quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Da tua entrega


Me entrega tuas mãos e eu te prometo através delas fazer surgir o caminho para nos conduzir, a estrada há tanto ansiada, pois ela já existia antes mesmo de nos darmos conta. O que hoje existe de nós e em nós nos é ancestral. Íngreme e escarpada é essa estrada, mas a única garantia é estar ao teu lado, independente de tudo aquilo que possamos encontrar no fim do caminho, o que quer que exista lá, nos encontrará de mãos dadas.
Me entrega teus sonhos e eu te prometo fazer deles, junto dos meus, algo tão real a ponto de tocá-los antes mesmo que eles sejam concretos, construção feita de asas, um tanto de medos e uma fé que não se mede nem se explica.
Me entrega teu corpo, meu vasto deserto, imenso e morno, porque todos os mistérios da minha vida inteira reúnem-se na extensão da tua pele, se materializam em cada poro teu, estendem-se diante de mim numa oferta irrecusável, pois acima e além de tudo o que possa ser o teu prazer e o meu, há todos os segredos que sintetizam o sentido do que me faz ser e estar.
Me entrega teu silêncio, tudo aquilo que sempre te pesou, para que juntos possamos libertar da própria clausura o que nos prendeu, o que há tanto nos faz prisioneiros do injustificável, do que hoje nos é inaceitável. Me entrega teu silêncio, pois longe do desconcerto, ele me conforta. Teu silêncio me acolhe em braços há muito esperados. Teu silêncio meu diz muito mais de você que todas as palavras que ensaias pra dizer e nunca dizes.
Me entrega teus medos, e ainda que eu não saiba o que fazer ao juntá-los aos meus, te prometo a coragem que só existe com a tua presença absurdamente necessária em todas as horas dos meus dias. Sem você, eu não teria dado sequer um passo na direção de tudo aquilo que foi capaz de modificar toda a minha existência, pois antes de ti, o que havia era uma sobrevida. Hoje, o que é pleno de sentido se confirma quando minhas mãos te tocam, quando meus olhos me vêem refletida nos teus, quando teu ar escapa dos teus pulmões para que eu respire melhor e viva, para você, por você, simplesmente porque o que existe de mim necessita de ti para resistir, porque não existe nenhuma saída para nós, não há qualquer vão pelo qual possamos escapar de nós, ainda que tenhamos tentado à exaustão. Nos fomos fatais, inescapáveis. Fomos um para o outro o que tínhamos que ser. E ainda somos. Seremos sempre. Corpo e alma. Pele, presença e amparo. Porto, escudo e descanso. Espelho e abismo onde atiramos toda a nossa pouca fé.
Me entrega tua vida, pois é somente com tudo aquilo que tens que conseguirei me reconstruir depois de me perder em ti, me desfragmentar em todos os pedaços que colhes nas tuas manhãs repletas da sequência de horas iguais, vazias de sentido sem que dos meus olhos retire a certeza da tua espera finda.
Me entrega teus olhos, de som e cor, que há muito fiz deles meus guias nas noites escuras, quando nada havia para me fazer voltar a crer além do brilho deles. Me entrega teus olhos para serem meus espelhos, para que os meus não tenham receios de te mostrar minha própria entrega absoluta. Me entrega teus olhos...para que por eles minha alma repleta de ti possa ser de nós o que realmente existe de maior.


Rosana

P/ Jean Luvisoto. Abimo pectore. Sempre. E pra sempre.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009


Procurei tantas formas pra dizer, na verdade, usei todas as que conhecia, e algumas que eu só tinha ouvido falar. Testei todas. Todo esse tempo. Nenhuma surtiu efeito. Todas deram errado. Ou será que fui eu quem não as disse de um jeito certo?
Te avisei dos passos em falso. Dos tropeços. Você justificou dizendo que talvez fosse assim mesmo. Mas eu sabia que não. Não era pra ser. Não vindo de nós. Mas, afinal de contas, o que tínhamos de tão especial? Você não disse nada. Nem entendeu. Desatento, passou ignorando as vírgulas, os pontos de exclamação, as reticências quando eu já estava cansada demais para continuar tentando. Você ignorou até mesmo meu esforço durante tantos e tão longos anos... Tudo bem...
Sei que você viu o copo transbordar, isso você não vai negar. Você notou o tremor das minhas mãos mesmo quando tentei disfarçar. Você viu a distância se instalar, de maneira abrupta muitas vezes. Você estava lá, vendo minhas mãos estendidas à espera de ajuda. Você não se moveu. Observou impassível meu desespero, meu descontrole, todo os meus temores. Você ouviu todos os clamores, todos os chamados, os pedidos apavorados. Você viu meus olhos esgazeados de dor e olhou para o outro lado. Você me deixou sangrar sozinha uma dor que me fez acreditar que era também a tua. Você se tornou o fatal punhal cravado nas minhas costas. Seguiu enquanto eu agonizava. Sorriu para o mundo quando eu já não acreditava ter mais nenhuma lágrima para derramar. Você me condenou por pecados que há muito eu já havia me redimido por não os ter cometido. Você mentiu. E me deixou sozinha como disse que eu nunca estaria.
Você tomou nos braços outro corpo que não o meu, sepultando sonhos que antes dera asas para voar junto aos teus. O teu poder de destruição foi gigantesco... Você devastou um mundo inteiro que construí para te esperar. Você se manteve no mesmo lugar sem se importar. Tornou-se surdo aos gritos lancinantes e aos apelos mudos. Tornou-se cego ao que ofereci mesmo quando dizia que era tudo o que queria, era tudo o que precisava pra seguir, era tudo o que eu tinha. Você deixou que acreditasse no que não existia, maculou o universo que da dor eu reerguia. Pra você, eu destruí todos os muros e no lugar, construí pontes para que você pudesse atravessar em segurança.
Você continuou seguindo o teu caminho. Mas deixou aqui teu rastro, tua sombra, um amontoado de cacos, estilhaços pontiagudos de um espelho que não mais refletia tua imagem. Você me deixou soterrada por escombros, perdida num mundo que eu já não reconhecia, você levou de mim tudo o que havia. E agora, o que espera que eu diga?



Rosana Ribeiro



"...Já te matei mais de mil vezes
Mas teu amor sempre me vem
Então me diga quantas vidas você tem?..."