quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Da tua entrega


Me entrega tuas mãos e eu te prometo através delas fazer surgir o caminho para nos conduzir, a estrada há tanto ansiada, pois ela já existia antes mesmo de nos darmos conta. O que hoje existe de nós e em nós nos é ancestral. Íngreme e escarpada é essa estrada, mas a única garantia é estar ao teu lado, independente de tudo aquilo que possamos encontrar no fim do caminho, o que quer que exista lá, nos encontrará de mãos dadas.
Me entrega teus sonhos e eu te prometo fazer deles, junto dos meus, algo tão real a ponto de tocá-los antes mesmo que eles sejam concretos, construção feita de asas, um tanto de medos e uma fé que não se mede nem se explica.
Me entrega teu corpo, meu vasto deserto, imenso e morno, porque todos os mistérios da minha vida inteira reúnem-se na extensão da tua pele, se materializam em cada poro teu, estendem-se diante de mim numa oferta irrecusável, pois acima e além de tudo o que possa ser o teu prazer e o meu, há todos os segredos que sintetizam o sentido do que me faz ser e estar.
Me entrega teu silêncio, tudo aquilo que sempre te pesou, para que juntos possamos libertar da própria clausura o que nos prendeu, o que há tanto nos faz prisioneiros do injustificável, do que hoje nos é inaceitável. Me entrega teu silêncio, pois longe do desconcerto, ele me conforta. Teu silêncio me acolhe em braços há muito esperados. Teu silêncio meu diz muito mais de você que todas as palavras que ensaias pra dizer e nunca dizes.
Me entrega teus medos, e ainda que eu não saiba o que fazer ao juntá-los aos meus, te prometo a coragem que só existe com a tua presença absurdamente necessária em todas as horas dos meus dias. Sem você, eu não teria dado sequer um passo na direção de tudo aquilo que foi capaz de modificar toda a minha existência, pois antes de ti, o que havia era uma sobrevida. Hoje, o que é pleno de sentido se confirma quando minhas mãos te tocam, quando meus olhos me vêem refletida nos teus, quando teu ar escapa dos teus pulmões para que eu respire melhor e viva, para você, por você, simplesmente porque o que existe de mim necessita de ti para resistir, porque não existe nenhuma saída para nós, não há qualquer vão pelo qual possamos escapar de nós, ainda que tenhamos tentado à exaustão. Nos fomos fatais, inescapáveis. Fomos um para o outro o que tínhamos que ser. E ainda somos. Seremos sempre. Corpo e alma. Pele, presença e amparo. Porto, escudo e descanso. Espelho e abismo onde atiramos toda a nossa pouca fé.
Me entrega tua vida, pois é somente com tudo aquilo que tens que conseguirei me reconstruir depois de me perder em ti, me desfragmentar em todos os pedaços que colhes nas tuas manhãs repletas da sequência de horas iguais, vazias de sentido sem que dos meus olhos retire a certeza da tua espera finda.
Me entrega teus olhos, de som e cor, que há muito fiz deles meus guias nas noites escuras, quando nada havia para me fazer voltar a crer além do brilho deles. Me entrega teus olhos para serem meus espelhos, para que os meus não tenham receios de te mostrar minha própria entrega absoluta. Me entrega teus olhos...para que por eles minha alma repleta de ti possa ser de nós o que realmente existe de maior.


Rosana

P/ Jean Luvisoto. Abimo pectore. Sempre. E pra sempre.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009


Procurei tantas formas pra dizer, na verdade, usei todas as que conhecia, e algumas que eu só tinha ouvido falar. Testei todas. Todo esse tempo. Nenhuma surtiu efeito. Todas deram errado. Ou será que fui eu quem não as disse de um jeito certo?
Te avisei dos passos em falso. Dos tropeços. Você justificou dizendo que talvez fosse assim mesmo. Mas eu sabia que não. Não era pra ser. Não vindo de nós. Mas, afinal de contas, o que tínhamos de tão especial? Você não disse nada. Nem entendeu. Desatento, passou ignorando as vírgulas, os pontos de exclamação, as reticências quando eu já estava cansada demais para continuar tentando. Você ignorou até mesmo meu esforço durante tantos e tão longos anos... Tudo bem...
Sei que você viu o copo transbordar, isso você não vai negar. Você notou o tremor das minhas mãos mesmo quando tentei disfarçar. Você viu a distância se instalar, de maneira abrupta muitas vezes. Você estava lá, vendo minhas mãos estendidas à espera de ajuda. Você não se moveu. Observou impassível meu desespero, meu descontrole, todo os meus temores. Você ouviu todos os clamores, todos os chamados, os pedidos apavorados. Você viu meus olhos esgazeados de dor e olhou para o outro lado. Você me deixou sangrar sozinha uma dor que me fez acreditar que era também a tua. Você se tornou o fatal punhal cravado nas minhas costas. Seguiu enquanto eu agonizava. Sorriu para o mundo quando eu já não acreditava ter mais nenhuma lágrima para derramar. Você me condenou por pecados que há muito eu já havia me redimido por não os ter cometido. Você mentiu. E me deixou sozinha como disse que eu nunca estaria.
Você tomou nos braços outro corpo que não o meu, sepultando sonhos que antes dera asas para voar junto aos teus. O teu poder de destruição foi gigantesco... Você devastou um mundo inteiro que construí para te esperar. Você se manteve no mesmo lugar sem se importar. Tornou-se surdo aos gritos lancinantes e aos apelos mudos. Tornou-se cego ao que ofereci mesmo quando dizia que era tudo o que queria, era tudo o que precisava pra seguir, era tudo o que eu tinha. Você deixou que acreditasse no que não existia, maculou o universo que da dor eu reerguia. Pra você, eu destruí todos os muros e no lugar, construí pontes para que você pudesse atravessar em segurança.
Você continuou seguindo o teu caminho. Mas deixou aqui teu rastro, tua sombra, um amontoado de cacos, estilhaços pontiagudos de um espelho que não mais refletia tua imagem. Você me deixou soterrada por escombros, perdida num mundo que eu já não reconhecia, você levou de mim tudo o que havia. E agora, o que espera que eu diga?



Rosana Ribeiro



"...Já te matei mais de mil vezes
Mas teu amor sempre me vem
Então me diga quantas vidas você tem?..."

quinta-feira, 29 de outubro de 2009


Será o grito a medida do abismo?
Por isso grito sempre que cismo
Sobre essa vida tão louca e errada...
Que grito inútil!
Que imenso nada!...


Vinícius de Moraes

quarta-feira, 28 de outubro de 2009


Tudo o que aqui escrevo
A tua mente acompanha
Sem sons
Sem olhares
Sem presença física.
Todos os dias fico no meu canto
Aguardando a chegada dos teus braços
Para que desembarques no meu peito.
Amo a única coisa que todos odeiam
A forma como desarrumas as minhas manhãs
As minhas tardes
As minhas noites
Os minutos e até os segundos.
Neste momento sorris.
Um sorriso desenhado pela ansiedade
De receber mais projeções dos meus sentimentos
Dos meus pensamentos
Telepaticamente ligados...
Nós...

Sérgio Minhós

Que tu venhas a mim com tuas mãos de flores e delicadezas pra entregar todos os teus medos, tuas dores, o assombro de que foram feitas tuas noites antes de te fazer aqui. Que tuas mãos, que me buscavam há tanto, antes mesmo de chegar, tenham a certeza de que encontrarão as minhas após uma espera que foi eterna pelo tempo que se arrastou lento demais. Que teus temores finalmente repousem com os meus sob os nossos pés exaustos das longas estradas sem nós dois juntos.
Que teu corpo venha a mim com fome e fúria, violência e despudor, sede como de uma ressaca de mil mares. Dar-te-ei de beber de mim, pranto e gozo, fonte e alívio. Alimentar-te-ei de mim, mas nunca a ponto de saciar tua fome, nunca a ponto de sentires que já estás farto. Eu alimentarei a tua fome. Que para o teu corpo o meu seja o porto, o descanso, o abismo onde mergulhas para poder te encontrar e me resgatar repleta de ti. Que meus seios acolham tuas lágrimas e teus lábios. Que eu seja muito mais que sonho, por ser real e estar ao teu alcance. Faz-me tua de verdade. E para sempre.
Que teus risos ecoem por toda a minha volta. Farei de todos eles juntos um hino sempre novo, e com eles inventarei canções para velar teu sono quando teus medos se fizerem maior que meus braços e tentarem te assombrar. Eu estarei ali a te embalar.
Que teus sonhos encontrem espaço e asas no ar que vai nos rodear finalmente juntos. E que voem. E que se libertem de ti, que se alimentem da luz que há em ti para se tornarem reais. Vou estar ao teu lado para assistir. E eu acreditarei em todos eles, talvez bem mais que você, por isso nunca permitirei que os deixe apodrecer guardados na tua alma. Eles merecem existir.
Que teus olhos me reflitam sempre, antes de serem as janelas pelas quais tu deixas um pouco da tua alma atravessar, eles são meu espelho e é só neles que me vejo real. É neles que existo para ser quem sou, sem disfarces, nua também na minha alma para você.
Que eu saiba te dizer e te fazer entender, em todos os dias do nosso para sempre, que tudo o que quero é aquilo que entrego a você. Eis minha prece.



Rosana 27.outubro.2009
Para Jean Luvisoto. Por ser o que de maior existe em mim. Definitivamente. Pra sempre. Abimo Pectore.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009


"...E hoje quando amanhece o sol
Abro a janela pra chuva
Que coincidência: tua mão
Não cabe mais na minha luva
O que aconteceu com o futuro que morreu?
Ou nunca existiu?
Você nem olhou pras coisas que admiro
E nem me ouviu
Mas era eu quem te chamava com meu último suspiro
O que aconteceu com o futuro que se perdeu?
O que aconteceu com o meu futuro que era o teu?
Nunca foi tarde..."


Paulinho Moska

Pra Esquecer


Com um movimento lento, afastou a xícara com café dos lábios. O olhar, já tão vago, tão vazio, permanecia no mesmo ponto fixo. Fixos. Fixados apenas num determinado ponto porque nem mesmo tinha vontade de movimentá-los. Ao redor tudo era igual. Nada mudava. Então seus olhos também permaneceriam parados. Não buscariam mais. Não fitaria mais nada com a avidez de antes, de um dia, foi há tanto tempo!... Um tempo que deixara também de contar. As horas continuariam a passar, transformariam-se em dias, os dias acabariam por se tornar semanas; as semanas, meses; os meses, anos. Contar a lentidão com que elas passavam não alteraria em nada seu curso... Ela acabara por compreender isso.
Tornou a colocar café na xícara. Sempre pela metade. Foi isso que sua vida se tornara. A metade de algo. Nunca até o fim, até o fundo. Era sempre um meio-termo evitado por tantos anos como algo execrável e agora se fazia ali, em sua vida, era a sua vida e ponto. Perdera tanto tempo, tantos anos em lutas inglórias que nada restou de força para que pudesse ir contra o morno.
Fazia sempre a mesma coisa nas manhãs. Sentava-se diante da porta, xícara de café entre as mãos, ora entrelaçadas como que a abraçar o recipiente com o líquido quente, ora frouxas, perdidas também, tão perdidas ao longo do corpo quanto ela própria. Passava o tempo todo com os olhos fixos na porta, como agora. Antes, os olhos corriam, buscavam a presença, um sinal, qualquer coisa que pudesse denunciar a chegada dele. Nunca mais. Ela não tinha mais esperança. Mas ficava ali simplesmente porque não sabia mais fazer outras coisas. Seus passos desaprenderam qualquer caminho. Então ela se deixou ficar ali. Não sabia como fugir de tudo aquilo. Será que algum dia a fuga fora possível? Ela não saberia dizer... Se houve a chance de escapar, ela perdera. Por isso permanecia ali.
Ainda fazia mais café do que na verdade queria ou agüentava beber. Mas acostumara-se à companhia dele para o café, daí o exagero. O excesso. Nada, nunca, dela para ele era menos. Tudo era excessivo, desenfreado, incontido. Já havia tentado fazer menos café. Já havia tentado não ficar ali sentada naquele sofá com os olhos fixos na porta. Mas não conseguira. Não conseguira ir além dali. Além dos dias iguais e vazios de sentido.
Algumas vezes percebia que as mãos tremiam e o coração sobressaltava-se como se a pressentir a chegada dele. Ela, na verdade, podia mesmo sentir o quão perto ele parecia estar. Mas acabava se convencendo que era tudo uma bobagem. Sim, ele realmente estava muito perto, mas porque estava dentro. Dentro de si. Rendera-se também a esse fato.
Queria tanto poder abrir as janelas para que o ar puro entrasse, livrando-a daquela atmosfera pesada de café indigesto, e muitas vezes morno, e cigarros. E lembranças. E inércia. E medo. Sabia de tudo. Tinha plena consciência de tudo o que acontecera, tudo o que permitira. É por isso que temia. Não queria ter que encarar o que se tornara. Não queria ter que encarar o que sobrara. Não queria enfrentar os cacos que se colocavam diante dela, pontiagudos, espalhados pelo chão ao seu redor. Os cacos eram como espelhos. Os milhares de pedaços de espelho refletiriam ela. E suas lembranças. E os olhos dele. E tudo o que lançaram ao chão porque, ao contrário do que imaginavam, fora tanto que não puderam reter em si, não puderam manter para si. Não suportava, ainda, nem mesmo pensar em olhar à sua volta. Doía tanto ainda. Talvez doesse para sempre. Por isso permanecia ali, a maior parte do tempo, de olhos fixos no vazio. De vez em quando, fechava os olhos para esquecer...



Rosana 25.outubro.2009
Para Jean Luvisoto. Sempre. Pra sempre. Definitivamente. Abimo pectore.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Do que somos


Gosto do cheiro das tuas mãos entre as minhas, como se me contassem em aroma que o lugar delas é ali, entrelaçadas, unidas numa promessa muda de constância e permanência.
Gosto do cheiro do teu corpo morno, mistura de sal e sol, que vai se desprendendo da tua pele ao meu toque, enquanto meus dedos percorrem o que sei vasto, o que levaria mil anos e um pouco mais para acreditar real, ainda que já saiba meu pela tua entrega muda. Tomo posse de ti a cada dia e consentes sempre mais sem nada dizer. Tu me mostras em cada poro, a cada eriçar de pêlos, que esteve sempre a minha espera, teu porto de sempre, a tempestade que temes e ainda assim enfrentas. Temes por teu pouco fôlego para o meu mar, mas eu te digo com meus olhos para que sigas, para que sejas em mim o tempo que apazigua a revolta, a ressaca da ausência. Que tu sejas de mim e em mim, fome e fúria que nunca saciam, torpor que se instala lentamente nas veias no enquanto. Enquanto estás ali. Enquanto estou ali. Que tu finalmente sejas a promessa que não cumpriste, que me resgate da rua deserta no meio da chuva na qual me deixaste. Que tu cubras minhas feridas com tua saliva. Que me sangres apenas pra ti, para que te alimentes da minha vida, do que me transborda, do que já é impossível conter. Que tu sejas de mim e eu de ti, o indivisível, o maior, doença e cura, sanidade e loucura, o início e o fim, a extensão inevitável do corpo e da alma, o que sempre fora desde então. Que tu sejas de mim e eu de ti o inegável fato, o que não se consome, busca e encontro, o inesgotável, a certeza que só se tem ao se viver um amor tão grande assim.


Rosana 23.outubro.2009
Para Jean Luvisoto. Pela grandeza de tudo aquilo que somos juntos...Abimo pectore, pra sempre.

Do Vazio


Hoje trago os olhos vazios de promessas, cansados de fitar o cinza da ausência, de contemplar o deserto estendido diante de mim. Tudo é desolação e solidão. Minhas terras se tornaram extensões estéreis e áridas. Nada vinga no campo que deixaste à míngua. Nem flor nem erva daninha. Tudo vem morrendo à minha volta. Tudo o que um dia toquei, desfez-se como miragem, areia escorrendo por entre meus dedos e perdendo-se num tempo de nunca mais.
Meus pés seguem descalços, desaprenderam o rumo tão acostumados estavam em te seguir, jamais pensaram em trilhar outro caminho que não o mesmo que teus pés também descalços como pássaros num vôo em sincronismo. Hoje eles pisam cacos de tudo aquilo que ontem ainda era tão maior que eu mesma, era real, ontem ainda estava ali, eu mesma podia tocar, manter guardado à tua espera para que pudesse te escutar proclamando o fim da nossa clausura, repetindo o que sempre me fora sagrado ouvir, como se, ao me dizer, da tua boca saísse a certeza do final do meu caminho, o sentido, teu amor sempre fora meu maior e mais caro tesouro... Olho em volta e tudo ao meu redor é um monte de estilhaços pontiagudos que me ferem tão fundo por mais que eu permaneça imóvel neste quarto escuro em que me deixaste pra sangrar sozinha... Pra me olhar sozinha num espelho que não mais reflete tua imagem do outro lado. Coberta de cortes... Retalhada em postas... Nenhuma cicatriz... O sangue nunca vai parar de jorrar, vai continuar exposto espalhando o odor fétido de dor e desespero, um grito mudo, nó na garganta, olhos vítreos de quem morre por dentro e continua de pé. Os dias passam assim. Seguem sucedendo uns aos outros, formam os meses, vão tornar-se anos, são uma longa noite onde não existe mais o brilho dos teus olhos de som e cor pra me guiar. Sei que me perco mais e mais e nada há que eu possa fazer para ao menos me encontrar. Nenhuma fresta por onde eu poderia ter escapado nem mesmo há tempos atrás. Você ocupou todos os espaços, dentro e fora de mim.
Minhas mãos não se estendem mais pois conformaram-se com o vazio de não te encontrar. As lutas foram todas inglórias. Nenhuma vitória houve. Minha cama tornou-se uma lápide onde jaz meu corpo frio de nunca te saber ali. Lentamente, vou morrendo em asfixia pelo teu cheiro de sal e sol que invade meus pulmões. Sem tua pele morna sob meus dedos, eles foram se petrificando, tornaram-se mais uma parte morta de mim. Meus olhos, hoje vazios, de promessas e sonhos, de planos e esperança, fitam o nada, esperam pelo golpe de misericórdia. Esperam pelo fim.


Rosana 22.outubro.2009
Para Jean Luvisoto.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Do Outro Lado


Deitado em sua cama, ele olhava o teto enquanto sentia-se oprimido pelas paredes do quarto. Parecia que ultimamente nenhum lugar o comportava. Seu pensamento vagava, embora diversas vezes tentasse evitar que chegasse à única lembrança que agora se esforçava para esquecer, mesmo sabendo que seria em vão, já que aqueles olhos, de uma cor indefinida entre o verde e o castanho, insistiam em se mostrar a cada vez que fechava os seus.
Então deixou que ela o invadisse de vez, talvez assim fosse mais fácil acabar com as recordações. Não sabia de onde ela havia surgido, mas irrompeu em sua vida com força e violência típicas dos acontecimentos inesperados. A imagem da mulher segura não condizia com os sentimentos de menina quando ela se mostrava indefesa para ele, sempre pronta para ele, sempre ávida por ele. Adorava as ruguinhas que se formavam ao redor de seus olhos quando ela sorria...
Sorriu diante dessa lembrança quando o desejo o invadiu. Pensou no corpo branco e quase frio enquanto ele não a aquecia. Pensou na maciez da pele, na entrega absoluta com que ela se oferecia inteira para ele, corpo e alma, mente e coração, impossível não querer mergulhar de uma só vez dentro daquele corpo que lhe trazia alívio e do qual ele não tinha a mínima vontade de se ausentar, da mistura dos cheiros, dos pensamentos e sentimentos que atropelavam os dois com a velocidade da luz. Aquele corpo branco, cálido, era seu abrigo, sabia disso embora tentasse dissimular e negasse o fato até mesmo para si. Aquela mulher era seu maior inferno, tudo o que sempre temera se personificava nela. Tudo o que sempre desejara se encontrava nela, que se entregava numa oferta muda.
Impossível descrever alguém como ela. Era apenas ela, com sua bagagem de perdas e danos ao longo dos anos que já vivera. Era única. E povoava seus pensamentos, seus sonhos, sua cama, seu mundo, seu vazio. Ela descobrira sua solidão e não se assustou, pois era tão só quanto ele e seu mundo também era repleto de fantasmas e sombras.
Tudo de mais improvável acontecera. Tudo de doloroso e cruel os jogara de volta à realidade, que no fundo era tão simples de ser resolvida, embora ele mesmo não enxergasse um caminho adequado para que sua vida voltasse a ser exatamente igual ao que era antes que aquela mulher surgisse na sua frente no final de uma tarde tediosa e frustrante da sua rotina.
A força com que os dois enfrentaram o mundo não fora suficiente para que ela desistisse de ficar na sua vida nos primeiros dias. Mas para sua surpresa, mais uma vez, ela jogou tudo para o alto e abandonou o que não queria mais, o que não entendera nem conseguia lidar. Simplesmente fora embora e ele nem mesmo tentou detê-la. Era determinada demais, passional demais, forte demais até mesmo quando demonstrou sua fraqueza, suas lágrimas e sua impotência diante dele uma única vez.
Não sabia onde ela estava agora. A noite estava nublada e fria. O quarto o oprimia e não havia nenhum lugar para onde ir ou onde quisesse estar. Só sabia que a queria perto, mesmo que fosse para compartilhar o silêncio como tantas vezes. Tinha medo de admitir para si mesmo que ainda a queria, desgraçadamente, quase como uma doença sem cura. Queria estender sua mão e toca-la, mas a cama estava vazia. Queria ter a coragem que ela acreditou que tivesse para poder ao menos dizer a ela da necessidade brutal que sentia da sua presença, só para saber que estava ali, com aquele olhar meio infantil e seu sorriso inseguro. Queria não ter que saber de tudo isso, queria estar do outro lado, queria ter dito a ela que o esperasse, que um dia todo o tumulto em seu coração se acalmaria. Queria apenas que ela soubesse que ainda a amava hoje, mas sequer sabia onde estava.

Rosana Ribeiro 2005
Para Jean Luvisoto.

Do Silêncio


Então no fim era apenas isso. Um vazio como se toda a existência fosse um nada. Todas as suas crenças foram testadas e, como conseqüência disso, perdera a fé. Nos homens e principalmente em Deus. Até porque, só devemos confiar em quem conhecemos bem. E quem nunca se mostrou não devia merecer a confiança que tantos depositavam cegamente Nele. Escutara isso na televisão e viu que realmente fazia todo o sentido.
Tentara, em todos os últimos anos, entender o verdadeiro “milagre” ou sentido da vida e agora, caminhando pelas ruas sob o ar gelado que já durava muito, na sua opinião, chegara à conclusão que a vida era totalmente sem sentido. Deus, se é que ele realmente existia, que a perdoasse, mas a Sua conduta em milhares de anos, sinceramente, deixava muito a desejar. Desde a sua criação, o mundo era um verdadeiro caos, cheio de barbáries absurdas, insanidade, sofrimento. Como se fosse uma enorme e purulenta ferida que corroesse lentamente algum membro, proliferando vermes até a morte.
Viver, pelo menos na sua curta experiência, era brutal. Uma verdadeira ignorância nascer para somente lutar, sofrer e morrer, sem um pingo de felicidade(outra coisa que também deixara de acreditar). Não conhecera ninguém feliz em toda a sua vida. Achava que o que as pessoas acreditavam ser felicidade era apenas uma tranqüila resignação diante dos fatos imutáveis da própria vida. Viver é estar sangrando o tempo inteiro, às vezes de forma lenta, outras, como se a aorta estivesse exposta, jorrando. Viver era como se lançar em mar aberto em noite de tempestade, sozinho numa canoa. As pessoas viviam porque nasciam, sem pedir, claro! Até porque se soubessem bem o que seria viver, jamais cometeriam essa loucura. Viver era doloroso e absurdo. E insensato. Trabalham anos a fio, exaustivamente, apenas para pagar suas contas, porque na verdade têm é que sobreviver, da maneira que conseguem. Apenas pra morrer depois de tanta luta. A vida era isso: lutar até a morte, que às vezes demorava anos até chegar como grande alívio.
Entre o nascer e o morrer as pessoas planejam, almejam. Acreditam que se conquistarem algo que muito desejam se sentirão realizadas. Mentira. Somos ocos. E maus em nossa essência. Se existisse bondade natural no ser humano, ele não precisaria de educação, que lhe ensinassem o que é certo e/ou errado. E Deus, que alguém desde o início dos tempos nos ensinou a acreditar e a temer, mais provavelmente na ordem inversa, ou é surdo ou incrivelmente cruel, como se tivesse criado esse mundo apenas para se divertir, como se fosse uma espécie de arena em que ele soltava monstros que Ele mesmo aperfeiçoava com o passar dos tempos, criando seres que se superavam em abominações a cada geração. E depois de milhares de anos, não satisfeito, teimava em manter seu brinquedo preferido, tal qual uma criança cheia de mimos.
O que Ele espera que aconteça? As pessoas clamam Seu nome, suplicam desde o início dos tempos, com a vã esperança de que as coisas melhorem ou pelo menos não piorem mais. Nada acontece. Apenas numa coisa acreditava agora: de tudo o que acontecia ao ser humano, nada havia que fosse mérito de outrem. Não havia sorte, azar,destino. Apenas pessoas que já nasciam com um cansaço enorme para essa vida, como se já prevessem o que os aguardava.
Continuou caminhando pelas ruas. O frio era cada vez mais cortante. Intimamente, pedia fervorosamente que aqueles pensamentos não tomassem conta da sua mente,da sua vida. “Deus, por misericórdia, gosto de pensar, mas ficarei louca se a lógica for exatamente essa. Tenho o poder de acabar ou prolongar o meu sofrimento. Estou cansada demais até para acreditar em Ti. Então, se Você realmente existe, a hora de fazer um milagre é agora. Não quero mais. Não consigo mais dar um passo nesse imenso palco de insanidades no qual fui brutalmente arremessada. Se Você tem alguma coisa contra ou ao meu favor, fale agora ou cale-se para sempre. Porque sinto que o tempo está se esgotando e até hoje não vi um milagre, nem mesmo a bondade no coração do homem, muito menos no meu. Sei que sou apenas um dos vermes que se alimentam da carne da ferida exposta. Não sou menos nem sou mais, sou igual. É por isso mesmo que não suporto mais nem me olhar no espelho, porque vejo apenas sinais de cansaço, o tempo se esgotando e a falta de sentido em continuar caminhando. Fale agora...”
Os carros passavam pela movimentada avenida, pessoas caminhavam apressadas, outras em total abatimento, desesperançadas, destroçadas porque também não eram ouvidas e estavam tão ou mais cansadas que ela. Apesar de todos os sons, não ouvia nada. Então no fim era isso. O vazio. Entendeu o silêncio.

Ela não saberia dizer como tudo aconteceu. Acreditava que havia sido numa manhã de do-mingo, dia temido por muitos. Mas também poderia ter sido um processo lento, do tipo daquelas doenças que se alastram lentamente pelo organismo são, destruindo tudo: metástase. A segunda opção era a mais provável, pelo menos nesse caso, já que a desolação não acomete ninguém de uma hora para outra, se assim fosse, seria o horror e não desolação. E ela sabia muito bem a diferença entre esses dois sentimentos.
Caso alguém lhe perguntasse, não saberia dizer muita coisa, pois havia muito a descobrir para si mesma, digerir, tirar as próprias conclusões antes de repassar qualquer informação. Mas a maldita dúvida persistia: como foi que isso aconteceu?
Ela simplesmente acordara nessa estranha manhã de domingo, que nada tinha de diferente das outras desse mesmo dia, sentindo-se absurdamente oca. Não, oca não seria a palavra certa para definir seu estado. Mutilada caberia melhor. Sim, porque há muito convivia com esse sentimento para simplesmente acordar numa manhã e... puff!!, ver que ele subitamente tinha evaporado, como se nunca tivesse existido, como se fosse uma fantasia que criara para si mesma e, de repente, se cansasse dela, querendo viver e inventar novas aventuras. Por isso sentia-se mutilada. Porque algo lhe faltava. E isso a estava incomodando. Fora assim durante todo o dia, à noite também.
Procurava pelas palavras e percebia que elas desertavam, não queriam explicar o que não sabiam, bem como ela. Tentou dormir para ver se o dia passava mais depressa e com ele, essa sensação de dor vazia, de falta de sentido para o dia seguinte. Mas rolava na cama, de um lado para o outro. Ela caminhava pela casa como se procurasse por algo que não soubesse o que era, como se houvesse perdido algo imprescindível cuja falta a impediria e continuar.
Pensou em dezenas de alternativas para aquele momento. Tudo bem, poderia mesmo ser uma melancolia repentina e passageira, isso já acontecera antes, não era a primeira vez nem seria a última. Podia ser saudades, podia ser preguiça, podia ser vontade de viajar pra onde não conhecia, podia ser falta de um abraço bem apertado, do som de uma risada misturada à sua. Podia até mesmo ser algo mais sério, como a constatação de um fato. E ela analisou todas as possibilidades. Optou pela última. Com o passar dos anos e das experiências acumuladas (leia-se várias mancadas federais, com direito a tombos, escoriações e cortes profundos), aprendera a ser prática, pelo menos no que dizia respeito a si mesma. Quando se tratava de sofrimento, preferia sangrar todas as dores de uma só vez. Assim também passava mais rápido. Ou não.
Foi então que ela o viu lá. No meio de seus questionamentos mais profundos, às vezes ace-nando com um sorriso tímido, outras com a mão estendida, pronta para se entrelaçar com a sua, ou os braços abertos oferecendo um abraço. Só que entre os dois havia uma porta entreaberta. Era só pela fresta que podia vê-lo. A dúvida quase cruel era se escancarava a porta ou a fechava de uma vez, deixando que, sabe-se lá o quê, os separasse em definitivo. E se resolvesse escancarar a porta? Além dele, o que haveria do outro lado? E se estivesse tão cansado quanto ela até mesmo para acenar uma despedida?
Estava exausta das perguntas sem respostas, dos passos dados na direção do improvável, cansada de sempre ter que tomar as decisões, de ter que parecer forte todo o tempo como se não lhe fosse concedido nem mesmo o direito de se cansar e gritar um sonoro “foda-se” a tudo e a todos. Estava exausta até mesmo de esperar por ele, que mantinha a maldita porta entreaberta de propósito, que não dizia nada, que talvez esperasse que ela adivinhasse suas vontades e seu futuro. Será que ele sabia que ela não podia tanto? Será que ele esperava que ela lhe indicasse um caminho? Ela que há tempos atrás dissera pra que não seguisse por ali e ele respondera que não havia como voltar atrás. Ok, mas não esquece que nesse caminho tem bandido, tem mocinho, tem fera, tem bicho, tem princesa, tem lobo mau e solidão feroz. Teu conto de fadas é diferente do meu, boy. No meu o final feliz acontece no meio porque a gente pode de repente decidir que não quer o fim da história de tão boa que é pra viver e contar. No teu, o fim acontece mesmo é no começo, e tem estrada árida, sem cor, sem graça, sem a gente rindo depois de termos nos embebedado com vinho tinto no chão da sala, sem música que nos cala, sem silêncio que nos fala, sem pôr-do-sol avermelhado, sem frio na barriga de nervosismo e ansiedade, sem beijo de fome, sem abraço apertado, sem tesão de verdade, daqueles furiosos mesmo a ponto de assustar, lembra? Eu nunca esqueci... por isso continuo aqui, atrás dessa porta.

Sei do peso da minha bagabem e que a responsabilidade por ela é só minha. Minhas histórias tristes, os momentos em que gargalhei até escorrerem lágrimas dos meus olhos, as músicas que cantei, as tardes de sol se pondo na praia enquanto eu contemplava o horizonte da areia, garrafas de vinho vazias, os cinzeiros cheios, uma ausência dolorida... Tudo isso é meu, faz parte de mim, até mesmo a forma que dei às palavras para que elas expressassem sentimentos cuja explicação sempre fora desnecessária, são minhas. Sei, racionalmente falando, que teu amor também é meu. Tua fúria, o descontrole que escondes, a fome não saciada ainda, a mágoa pela lacuna formada de tempo e tristeza entre o nosso ontem e o nosso hoje, tudo aquilo que entregaste sem me dares realmente, tomei como meu. Mas guardo tudo isso em segredo. Porque ainda não ouso pronunciar teu nome à qualquer gente, não ouso despertar olhares de espanto e piedade... Eu seria apenas mais uma desvairada de olhos esgazeados com uma prece ininteligível nos olhos. Não ouso, ainda que todas as noites a lua se escenda no céu, deixar que ao menos uma nesga de claridade invada o cômodo que habitas. Não ouso te desnudar ao mundo. Por todo esse cuidado em te proteger de tudo aquilo que não precisas ser protegido, é que acumulo, também secretamente, as cartas que jamais te enviarei, as poesias que jamais tomarás conhecimento porque sei que ainda hoje chorarias por dentro e quero te poupar da dor de me saber, de deixar que ao menos um pouco do teu sentimento te escape pelos olhos e inunde teu próprio mundo, mistura amarga de sal e desolação. As minhas palavras são apenas tentativas fúteis e vãs de te gritar o que nunca pôdes escutar, lançando no mar garrafas com mensagens que nunca vão te alcançar, mesmo estando tão próximo a ponto de me enxergares no fim do teu caminho.
Não ouso sequer deixar que outra pessoa além de mim tome conhecimento do teu amor por mim, do teu desamparo, do desassossego que teu corpo experimenta longe do meu, da sede insaciável que tens de mim e que se contenta apenas com as pequenas gotas que me permites que te ofereça. Não ouso porque pra mim, teu amor ainda é uma fábula, um verdadeiro conto de fadas que custo a crer porque não nos foi dado conhecer o seu fim, embora ele já tenha há muito se apresentado para nós. Não, não digo que é uma mentira porque tua verdade me transpassou como violento raio, me deixando aturdida porque nunca soube o que deveria fazer se por acaso um dia tu me amasses. Não... prefiro deixar que a minha história, que também fala de ti, repouse sagradamente nos baús empoeirados das nossas memórias, quase silenciosamente, embora nunca mansamente. Que as palavras fiquem à espera da destruição através do fogo, das intempéries do próprio tempo ou mesmo do alívio do esquecimento. Eu mesma não teria coragem de bani-las de mim ainda que fosse para seguir livre de ti...


Rosana 06.janeiro.2008

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Do Aprendizado

Um dia aprendo a não ter medo. O medo que paralisa e confunde. Que tira o sabor das coisas, alterando o paladar. Que tinge de cinza as retinas cansadas de tanto olhar e não ver. Que petrifica as mãos ausentes do contato.
Um dia aprendo a olhar a estrada e ver realmente um caminho. Novo. Reaprendo a preparar as malas só com o que me for necessário pra seguir adiante. Nada de pesos inúteis. De culpas vãs. De algemas que acorrentem pelos pés. Nada quero de raiz me mantendo num chão firme, sem as surpresas das curvas no trajeto, de novas paisagens.
Um dia aprendo a saudar a manhã com a alegria de uma criança que vê tudo pela primeira vez. Vou oferecer sorrissos, ainda que pálidos, à espera de que o sol que surge no horizonte se encarregue de iluminá-los. Vou aguardar as estrelas nas noites mais escuras e com elas traçar os pontos para alcançar meu futuro, pois ele sempre chega rápido demais e quando menos espero.
Um dia aprendo a estender minhas mãos numa oferta sem nada esperar em troca, até hoje elas se encontram vazias. Vou viver sem a pressa de quem não tem nenhum lugar para chegar, mas um passado para escapar. Vou despejar meu cansaço, tratar bem meus pés exaustos dos caminhos errados.
Um dia aprendo que a esperança é feita de bordados delicados e intrincadas tramas das quais fazem parte toda a minha história.
Um dia aprendo a alimentar os cães famintos que se tornaram meus olhos vazios de sentido com o que ficou de melhor em mim e hoje vejo que é muito, que é tudo o que preciso.
Um dia aprendo a construir pontes à minha volta e não mais muros. Aprendo a abrir portas que nem me lembrava que havia fechado. Aprendo que o tempo passa mais rápido do que percebo e que só tenho mesmo algum poder, e ainda assim muito pequeno, sobre o meu agora. E isso deve bastar.
Um dia aprendo a enterrar meus sonhos mortos, tudo o que ainda existe de insepulto em mim mas que já não me serve, pesa demais sobre meus ombros, desnecessariamente... inutilmente...
Um dia vou perceber que há muito me perdoei, até mesmo de pecados que não cometi.
Um dia aprendo a polir os troféus das batalhas que venci, deixo para trás a dor das guerras que perdi e respiro fundo o novo ar de quem se vê sobreviver por ter uma história pra contar.
Um dia, ainda que demore toda uma vida, aprendo a te deixar ir...

Rosana 14.Outubro.2009

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Do Abismo


Há dias a sensação persistia. Muitos dias. Horas que se perdiam na vastidão do tempo, transcorrendo rápidas demais, deixando-a aturdida. A sensação de estar atravessando um abismo numa fina e fragilíssima corda estendida quase com precisão cirúrgica. A vida era a corda. Ele era o abismo.
E havia também o medo. O medo de ficar, o medo de partir, o medo de se atirar no ar e não encontrar a mão para se segurar. Ainda que se fizesse brisa e voasse com o próprio vento, não queria ir para longe. Pelo menos não tão longe a ponto dele não mais encontrá-la por perto, ao alcance de suas mãos de flores, sóis e canela. E quando ele acenava, de longe, com essas mesmas mãos que pareciam lhe oferecer todo o mundo, ela fechava os olhos de medo. Tinha medo de que fosse apenas uma ilusão de ótica quase palpável. Tinha medo de que ele fosse real e estivesse mesmo, como sempre desejara, perto demais a ponto de poder tocá-lo sem que se esvaísse qual fumaça diante de seus olhos. Tinha medo de deixá-lo ser mais em si, ele que já era tanto e tão imenso. Tinha medo de encontrá-lo em todos os vãos e frestas de si mesma, sem que restasse qualquer lugar onde pudesse se esconder, caso fosse preciso. E sempre era.
Na verdade, ela queria a certeza de que a mão dele estaria ali, do outro lado do abismo que era ele, esperando por ela, para que não caísse sozinha no mesmo abismo que eram os dois juntos. Queria os dois juntos, seguros, na corda bamba, ainda que exaustos de se equilibrarem na vã tentativa de fugir do inevitável que eram eles. Juntos. Ali. Na verdade, entre a corda e o abismo, entre a vida e os dois. E entre a vida dos dois.
Mas algo nela havia de pássaro e queria abrir as asas, alçar vôo, fugir das sombras e elevar-se acima dos dias sem sentido. Percebera, numa fração de segundos, que enganara-se. Não havia mais espera. Com o pouco de coragem que restara, batera as asas para longe. Não sabia onde se encontraria. Mas naquele abismo tinha certeza de que não seria.

Rosana 18.julho.2009

sábado, 14 de fevereiro de 2009

O Espelho

Do outro lado, o mesmo par de olhos. Um pouco mais atentos, talvez. As mesmas perguntas. A mesma falta de respostas. A mesma quantidade de rugas que se forma ao redor dos olhos.
Do outro lado, o mesmo par de olhos e o mesmo silêncio, a mesma tristeza escorrendo vermelha pelas horas que se arrastavam silenciosas, lentas, úmidas das lágrimas represadas. Do outro lado, o mesmo barco se afastando do cais, perdido sem a bússola da presença necessária, fadado a naufragar em águas paradas em meio a tantas brumas.
Do outro lado era a revolta de viver em cárcere, debatendo-se em vão contra tudo aquilo que não podia se livrar, o que prende e ainda assim não se vê: está dentro.
Do outro lado, o cansaço, o enfado de todos os dias, tudo sempre igual, o que já sabia-se de cor, inclusive seu final infeliz. E ainda assim seguia. Do mesmo lado. Do outro lado. Ele continuava. Continuava ali. Ela também continuava. Continuava lá.
Continuavam, cada um do seu lado da história, com o nó na garganta calando as verdades depois de engolir todas as mentiras nas quais era preciso acreditar para se chegar na manhã seguinte. E tantas outras iam se seguindo. O mesmo sabor amargo na boca ressequida pela mesma sede, pela mesma falta, pela ausência presente há tanto. Café, cigarro, conhaque, vinho tinto. O que fosse, ainda descia acre pela garganta. Ainda apertava o peito. Ainda queimava por dentro. Ainda sufocava. Ainda era tanto. Ainda tinha gosto de espera.
Do outro lado, estava ela: vencida, enfim, pela sombra pálida que ele havia se tornado. Numa tentativa desesperada, sua última, estilhaçou o espelho em mil pedaços. E eram mil olhos dele, de som e cor, de silêncio e cinzas, espalhados, separados, esgazeados de dor, olhando bem dentro dos olhos dela. Era ali que sempre o habitara, sem que sequer suspeitasse, e agora sabia. Mil vezes. De mil formas diferentes...

P/ Jean Luvisoto. Meu espelho... meu abismo, meu abrigo, amor maior... Abimo Pectore.

Da Espera


O conhaque repousava no copo à sua frente e o cigarro queimava entre os dedos sem que o tragasse. O olhar era vago, perdido por entre as lembranças, tudo aquilo que lhe voltava à mente com incrível nitidez e velocidade. Pelo menos seu pensamento poderia seguir a direção que quisesse. Talvez chegar até onde ela estivesse agora, a mulher de cabelos negros e olhos de cor indefinida, perdida numa cidade estranha, guardada para si num tempo onde não se conjuga qualquer verbo.
A única coisa em que conseguia pensar era na voz. Assustadoramente real. Hoje ela deixara de ser apenas uma lembrança. Assumia agora uma proporção imensurável em si mesmo, ela, que sempre fora tanto. A voz lhe chegara aos ouvidos violenta, quente, próxima demais, dedo numa ferida, chaga exposta. Um soco no estômago teria doído menos e não o deixaria assim, com olhar catatônico. Ela ainda era seu veneno, sua mandrágora, o ópio que espalha o torpor lentamente. Se estendesse as mãos chegaria a tocá-la. Seu corpo todo parecia feito de chumbo, pesando inerte no sofá da sala banhada em silêncio e escuridão no meio da madrugada fria.
Quantos anos se passaram até aquele momento em que ele pudera ouvi-la de novo? Os dias passaram lentos, somando-se uns aos outros. A espera não findava, ela não voltava e ele ainda sangrava.
Talvez ela fosse mesmo irreal, um sonho, uma visão, mas sabia que era o corpo no qual sempre quisera entregar todo o seu cansaço. O mesmo corpo que agora tomava forma em sua frente. Já nem precisava dormir, sonhava acordado em todas as horas do seu dia, buscava a presença nas ruas por onde ela não mais seguia. Fora ela todo o seu amor e dor maior. Perda dolorosa que nem mesmo o tempo podia levar de si, tamanha sua força. Era da escuridão que ela surgia em si mesmo, inundando seu mundo com a luz daqueles olhos.
Era seu tormento e seu consolo. Sua própria paz habitava nela, assim como sua alma que seguia em desespero desde que ela se fora. Sem qualquer aviso. Sem qualquer despedida. E se agora ressurgia em sua vida, a queria, sim, da maneira mais absurda e visceral e que independia até mesmo de sua própria vontade. Sua vida, que não era a vida que queria, não a comportava, justo ela, aquela mulher que desejava mais que tudo.
Naquela tarde soubera que sempre a esperara, definitiva em sua coragem de se entregar mais uma vez ao que era improvável. Soubera que ela sempre seria o exílio necessário que não mais temia.
O sol começava a rasgar com seus raios o dia que surgia. Um dia a menos longe dela, que logo voltaria. E o encontraria à sua espera. Como sempre estivera.



P/ Jean Luvisoto. Amor sempre, pra sempre. Abimo Pectore.

Da Presença

O seu abraço eu quase sinto. De vez em quando. De vez em quando, fecho meus olhos e já não sei se imagino ou sinto você chegando por trás, manso, pisoteando minha sombra no meio de uma tarde qualquer, só para me enlaçar pela cintura, rasgando meu pescoço com teu beijo, mistura de ternura e fome. E se eu abrir os olhos, o calor da tua boca úmida de saliva e sal e cigarro e tua sede insana de mim, vai estar ali, no meu pescoço, ainda que tu não estejas atrás de mim, esmagando minha sombra com tua própria sombra e teu corpo. Se eu olhar para trás, tua sombra vai estar ali, fundida à minha numa conjunção indelével no meio de uma tarde qualquer. Não importa qual tarde seja. Sei que haverá sol dentro, a despeito das tempestades que assolam a cidade nesse final de primavera.
Se me esforço um pouco mais, permito que a tarde se vá e dê lugar à noite, enquanto imagino, não, não imagino, me lembro do teu olhar pousado atentamente sobre mim. E só de te imaginar tão perto, tão ali na minha frente, no mesmo cômodo, sinto a boca seca como numa ressaca de mil mares. E não há teu beijo, que é do que realmente tenho sede. Quero te beber, mansa, sôfrega, não sei, só sei que te quero inundando minha boca, descendo quente e fresco pela minha garganta. Te quero dentro. Mas não há você nem teu beijo. Nem vinho tinto ou conhaque. Só café amargo e o último trago no cigarro.
Desisto de imaginar. Já é madrugada e você ainda me dói de vez em quando. Sorri pra mim teu riso de encantador de serpentes, de mágico que esconde o segredo do mais simples de todos os truques, teu riso de doçura e certeza, teu riso por mim, de mim, teu riso de alívio. Enquanto sorris, deixo uma ou duas lágrimas escaparem dos meus olhos, um soluço me sacudir nos teus braços enquanto me apertas mais forte e me entendes, da maneira silenciosa que sempre foi nossa, que choro para deixar escapar um pouco do muito que me dói, para aliviar um pouco o meu cansaço, que é o cansaço dos meus pés exaustos das estradas.

P/ Jean Luvisoto. Sempre. Abimo Pectore.