segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Pra Esquecer


Com um movimento lento, afastou a xícara com café dos lábios. O olhar, já tão vago, tão vazio, permanecia no mesmo ponto fixo. Fixos. Fixados apenas num determinado ponto porque nem mesmo tinha vontade de movimentá-los. Ao redor tudo era igual. Nada mudava. Então seus olhos também permaneceriam parados. Não buscariam mais. Não fitaria mais nada com a avidez de antes, de um dia, foi há tanto tempo!... Um tempo que deixara também de contar. As horas continuariam a passar, transformariam-se em dias, os dias acabariam por se tornar semanas; as semanas, meses; os meses, anos. Contar a lentidão com que elas passavam não alteraria em nada seu curso... Ela acabara por compreender isso.
Tornou a colocar café na xícara. Sempre pela metade. Foi isso que sua vida se tornara. A metade de algo. Nunca até o fim, até o fundo. Era sempre um meio-termo evitado por tantos anos como algo execrável e agora se fazia ali, em sua vida, era a sua vida e ponto. Perdera tanto tempo, tantos anos em lutas inglórias que nada restou de força para que pudesse ir contra o morno.
Fazia sempre a mesma coisa nas manhãs. Sentava-se diante da porta, xícara de café entre as mãos, ora entrelaçadas como que a abraçar o recipiente com o líquido quente, ora frouxas, perdidas também, tão perdidas ao longo do corpo quanto ela própria. Passava o tempo todo com os olhos fixos na porta, como agora. Antes, os olhos corriam, buscavam a presença, um sinal, qualquer coisa que pudesse denunciar a chegada dele. Nunca mais. Ela não tinha mais esperança. Mas ficava ali simplesmente porque não sabia mais fazer outras coisas. Seus passos desaprenderam qualquer caminho. Então ela se deixou ficar ali. Não sabia como fugir de tudo aquilo. Será que algum dia a fuga fora possível? Ela não saberia dizer... Se houve a chance de escapar, ela perdera. Por isso permanecia ali.
Ainda fazia mais café do que na verdade queria ou agüentava beber. Mas acostumara-se à companhia dele para o café, daí o exagero. O excesso. Nada, nunca, dela para ele era menos. Tudo era excessivo, desenfreado, incontido. Já havia tentado fazer menos café. Já havia tentado não ficar ali sentada naquele sofá com os olhos fixos na porta. Mas não conseguira. Não conseguira ir além dali. Além dos dias iguais e vazios de sentido.
Algumas vezes percebia que as mãos tremiam e o coração sobressaltava-se como se a pressentir a chegada dele. Ela, na verdade, podia mesmo sentir o quão perto ele parecia estar. Mas acabava se convencendo que era tudo uma bobagem. Sim, ele realmente estava muito perto, mas porque estava dentro. Dentro de si. Rendera-se também a esse fato.
Queria tanto poder abrir as janelas para que o ar puro entrasse, livrando-a daquela atmosfera pesada de café indigesto, e muitas vezes morno, e cigarros. E lembranças. E inércia. E medo. Sabia de tudo. Tinha plena consciência de tudo o que acontecera, tudo o que permitira. É por isso que temia. Não queria ter que encarar o que se tornara. Não queria ter que encarar o que sobrara. Não queria enfrentar os cacos que se colocavam diante dela, pontiagudos, espalhados pelo chão ao seu redor. Os cacos eram como espelhos. Os milhares de pedaços de espelho refletiriam ela. E suas lembranças. E os olhos dele. E tudo o que lançaram ao chão porque, ao contrário do que imaginavam, fora tanto que não puderam reter em si, não puderam manter para si. Não suportava, ainda, nem mesmo pensar em olhar à sua volta. Doía tanto ainda. Talvez doesse para sempre. Por isso permanecia ali, a maior parte do tempo, de olhos fixos no vazio. De vez em quando, fechava os olhos para esquecer...



Rosana 25.outubro.2009
Para Jean Luvisoto. Sempre. Pra sempre. Definitivamente. Abimo pectore.

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