quarta-feira, 6 de julho de 2011

Da Queda



Seus olhos perdiam-se na janela próxima sem na verdade fixarem-se em algum ponto específico. Olhava através da janela, é verdade, mas nada via. Sentia o frio subir-lhe pelos pés, mas também não se importava. Às vezes os ossos doíam, mas até a isso acostumara-se. Ela, que já caíra tanto, vezes sem conta a ponto de nem mesmo poder mensurar qual teria sido a mais dolorosa delas, estava arrasada. Não havia outra palavra para descrevê-la...há muitos dias...meses...
A dor da alma transparecia no olhar, hoje vago, distante, sem brilho algum. Não havia vontade. Não havia mais motivos. Ela apenas esperava o transcorrer lento das horas. Uma agonia cruel e sem fim. As horas arrastavam-se para se tornarem dias...os dias, semanas...as semanas, meses... e ela sabia que sobreviveria... Seu corpo era sua casca... Por dentro, nada. Tudo oco. Vazio. Desprovido de cor, forma, sentido. Nem mesmo ela se habitava... E também não se encontrava em lugar algum. Levaram-na de si mesma. Talvez tivesse sido ele, ao levar consigo o que havia de maior para si, que era ele mesmo nela, ela mesma nele. Ela olhava em volta... Sua vontade era gritar, mas sabia que ninguém jamais a ouviria. Ninguém entenderia. Ninguém saberia...
A dor explodia em si milhares de vezes ao longo dos dias que se acumulavam em sua vida. Cinzentos. Completamente ausentes de cor. Mas sentia a própria dor vermelha dentro de si. Sangrenta. Escorrendo viscosa por todas as suas paredes como se cães famintos com presas afiadas lhe dilacerassem a carne. Sua dor era quente. Era lenta. Era funda. Era a dor de parir ao revés. Sua dor era pior que a dor irremediável da morte. E ela mantinha o silêncio. Os olhos perdidos na janela próxima.
Vez em quando percebia que até mesmo as lembranças esmaeciam-se em si. Talvez ele tivesse levado até mesmo elas... Tirara-lhe tudo... O que ficara era pouco. Era nada. Era só vazio e dor.
Quando atrevera-se a caminhar, foi como pisar em cacos de vidros, navalhas, lanças envenenadas. Algumas vezes ela tentara. Até por fim desistir. Sabia-se aleijada. Mutilada de forma irreparável, irremediável... Insuportável. Claro, restara-lhe os pés. Mas desaprendera os passos para seguir qualquer caminho. Restara-lhe os escombros que, vez por outra, quando os olhos corriam ao redor como a buscar algo que sabia não se encontrar mais ali, contemplava, ainda estarrecida, como se fosse incapaz de compreender tamanha destruição. Os ingênuos realmente são assim. Custam a crer nos abismos aos quais são lançados de maneira impiedosa...covarde...cruel...
Sabia que parecia louca. A dor a enlouquecera. E enlouquecia ainda, cada hora um tanto mais. Não se reconhecia ao olhar-se no espelho. O que via ainda era ele. Mas quem era ele? Ela não sabia...Não sabia mais... Perdera a conta de quantos espelhos estilhaçara pela casa ao deparar-se com aqueles olhos de brilho ambarino...olhos de som e cor... Não mais queria vê-los e agora eram milhares de olhos encarando-a nos cacos de vidro pelo chão. As vagas lembranças que ainda permaneciam costuradas às costas pesavam hoje como mortalhas. Quando cansava-se de lutar contra o pouco que lhe restara, deitava exausta no chão entre víboras, escorpiões, ratos que roíam as sobras que ele lhe deixara por herança. Sobre as sombras que ainda teimavam em habitar a casa, ainda sentia o cheiro dele. Impregnava seus pulmões. O cheiro de sal e sol...
Já não havia pão, pele, leito, fome, vida. Havia o frio, cada vez mais intenso lá fora. Ela sentia penetrar-lhe nos pés descalços. Via a noite adentrar o céu pela janela. Ainda que não importasse, via. Cegara-se para o mundo, era verdade. Mas fingia. Fingia que via. Fingia que estava ali. Fingia que vivia ali. Ninguém percebia que seu corpo era hoje o sepulcro da alma morta... A mentira evapora. Fora apenas isso que ele lhe deixara...


Rosana Ribeiro 06.julho.2011

Para Jean Luvisoto... Mesmo agora...

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