quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Abimo Pectore


Os carros passavam numa velocidade assombrosa enquanto ela olhava a rua da janela de seu apartamento. Era um dia nublado, num sábado à tarde, de um mês qualquer. Ela mesma não se importava com calendários, já que aprendera a viver um dia de cada vez, por isso era indiferente às datas.
Em seu coração, habitava um sentimento libertador de paz. Mesmo com o fim, sentia-se livre, principalmente para esperar por algo maior e talvez tão inusitado quanto o fim, que, mesmo quando o soube próximo, evitou enxergar os sinais. Mas agora ela esperava. Algo tão imenso e violento quanto sua perda, queria testar seus limites, mesmo que fosse através dos próprios sentimentos, queria saber o quanto suportaria. Tinha uma sede imensa de se atirar ao mundo, sorvendo tudo de uma só vez, mesmo correndo o risco de se engasgar. Ela queria os riscos. Sabia-se kamikase e aceitava em si o que os outros achavam loucura.
Afastando-se da janela, percorreu a sala com os pés descalços. Hoje, tudo para ela era uma experiência única de sentidos. Queria estar desperta para a vida, para quando chegasse o fim, este não a tomasse de assalto. Odiava surpresas. Sua vida sempre fora planejada com dias de antecedência. Rasgara suas agendas. Não queria mais saber de relógios ou calendários. Queria apenas ter a liberdade de sentir e de viver de acordo com suas próprias regras. Esse era o seu jogo. E era um jogo que jamais poderia perder, já que jogava por e contra si mesma.
Tocou suavemente a orquídea que, solitária, dava um ar gracioso à sala. Suas pétalas frágeis possuíam uma resistência paradoxal. Notou que seus dedos tremiam enquanto sentia uma fisgada em seu peito. Lembrou-se que seu pai dizia que corações não doem. Mais uma mentira. O seu doía quase que constantemente, como se quisesse lembra-la de que ainda existia, quando parecia escutar uma voz que há muito se calara para ela, quando pensava em calor e lhe vinha à mente a lembrança do abraço para sempre perdido. Seus dedos saltaram das pétalas da flor e tocaram seu pulso onde as palavras em latim foram tatuadas. Era tudo o que lhe restara, o que estaria para sempre guardado no fundo do seu coração.


Rosana Ribeiro
05.Junho.2005
Para Jean Luvisoto.

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