quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Como se mata um sonho


Ele olhava atentamente para o caixão no salão vazio. A criança que ali se deitava era muito parecida com o que ele fora há muito tempo, mas ele não tinha coragem de se aproximar. Tinha medo de tocar o menino e ter a certeza de que mortos são reais.
Mesmo sem conseguir desviar os olhos do caixão, seu olhar estava perdido diante de tamanho absurdo. Lembrava-se da época em que brincava na rua com seus amigos, quando ganhou seu primeiro violão e sonhava em ser músico, mostrar ao mundo que ele também podia ser alguém, alguém que ele queria realmente ser. Mas isso havia sido há muitos anos, antes mesmo de vender sua alma e entregar seus sonhos. Por isso não conseguia se reconhecer naquele menino.
A gravata o sufocava, mas preferiu não tira-la, o incômodo o lembraria de que estava vivo, e era disso que precisava agora. Como não havia ninguém no salão, apenas tirou o paletó e sentou-se no chão com as pernas cruzadas, como fazia quando criança. Pelo menos assim, o rosto do menino, de olhos fechados e de semblante triste, sairia do seu campo de visão.
Sem perceber, lágrimas grossas começaram a escorrer pelo seu rosto e ele não sabia dizer se era de tristeza ou frustração, ou os dois. A dor era tão grande que queria gritar, mas um nó se formava na sua garganta e o calava.
De repente, a porta se abriu devagar e uma mulher entrou. Os olhos que sempre brilharam hoje pareciam apagados. A pele clara agora era de uma palidez quase mortal, como a do menino. Ela sentou-se na sua frente e por alguns instantes evitou encara-lo. Quando os olhos se encontraram, toda a dor, de todos os anos até ali, simplesmente desapareceu. As mãos da mulher estavam gélidas ao tocar as suas e lembrou-se de que ela sempre sentira muito frio. Sentiu uma vontade imensa de abraça-la e tira-la dali, daquele mundo absurdo que ele havia escolhido quando decidiu seguir por outro caminho. Será que ele ainda poderia voltar?
A mulher se levantou e prostrou-se diante do caixão onde estava o filho. Beijou-o na testa e segurou suas mãozinhas. Num gesto instintivo, o homem cobriu aquelas mãos com as suas e perguntou à mulher porquê ela jamais havia dito que ele tinha um filho, acreditando que assim, pela criança, também teria motivos para lutar pelos seus sonhos que há muito foram deixados para trás porque havia acreditado que seria melhor assim. Mas não foi. Condenou-se a uma existência vazia, querendo voltar sempre para os braços daquela mulher, para seu sonho e para a vida que enfrentariam juntos, mas acabava sendo atropelado pelos acontecimentos que o mantiveram longe, cada vez mais longe...
Ela olhou em seus olhos e, por um instante, ele imaginou ter visto o velho brilho em seu olhar. Ela nunca havia dito que ele tinha um filho porque depois daquele homem, a criança era seu maior tesouro, porque era todo ele, não só nos traços físicos, mas nos gestos, no sorriso, no olhar, e ela havia se contentado com isso, com o seu amor vivo na forma daquela criança.
Lentamente, ela retirou as mãos debaixo das mãos do homem. Não conseguia mais chorar, nem pelo homem nem pelo filho. Estava mortalmente ferida, embora soubesse que iria se recuperar das grandes perdas. O homem fez menção de acompanha-la e ela o impediu. Seguiria sozinha dali para frente, como ele a havia deixado anos atrás. Porque agora, nada mais importava, o sonho dos dois estava morto.



Rosana Ribeiro
31.Maio.2005
Para Jean Luvisoto.

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